Seguidores

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

Arte de Morrer – Budismo – Zen Budismo


A lenha se transforma em cinza.
A cinza não se transforma em lenha novamente.
Mas não devemos pensar que a cinza é depois e que a lenha é antes.
Saiba que a lenha tem a sua posição no darma*, de lenha, e assim, sendo lenha tem seu passado e seu futuro.
Embora tenha passado e futuro, atravessa passado e futuro.
A cinza está em sua posição do darmade cinza e tem seu passado e futuro.
Assim como a lenha, depois de se tornar cinza, não volta a ser lenha novamente, da mesma maneira uma pessoa, após a morte, não volta à vida.
Por isso não dizemos que a vida se transforma em morte.
Este é o caminho estabelecido do Darmade Buda.
Por esta razão é chamado de não nascido.
A morte não se torna vida.
Este é o estabelecido girar da roda do Darmade Buda.
Por esta razão é chamado de não morto.
A vida tem o seu próprio tempo: começo, meio e fim.
A morte tem o seu próprio tempo: começo, meio e fim.
Por exemplo, é como inverno e primavera.
Não pensamos que o inverno se torna primavera.
Não dizemos que a primavera se transformou em verão.
(Shobogenzo Genjokoan de Mestre Eihei Dogen -1200-1253)
Budismo é uma tradição religiosa com inúmeras ordens e subordens, cujas interpretações e adaptações dos ensinamentos de Buda podem inclusive se contradizer.
Neste trabalho vou me dedicar especialmente ao Zen Budismo, tradição Soto Shu - ordem fundada no Japão pelo Mestre Eihei Dogen, no século XIII – conforme me foi ensinado e transmitido por meus mestres: de ordenação monástica nos Estados Unidos da America do Norte (Taizan Maezumi Roshi), de prática monástica no Mosteiro Feminino da Província de Aichi (Kakuzen Shundo Roshi) e mestre de transmissão do Darma (Yogo Suigan Roshi). Cada um de meus mestres e mestra pertencem a linhagens diferentes, embora todos sejam da mesma ordem monástica.
É importante salientar esses detalhes, pois o que vou escrever aqui reflete uma das inúmeras visões possíveis dentro da própria ordem monástica Soto Shu.
As questões que proponho levantar neste trabalho são as seguintes:
Quem ou o que somos nós, seres humanos?
O que entendemos por vida e o que entendemos por morte?
Precisamos nos preparar para morrer? Morrer é uma arte?
Precisamos nos preparar para viver?
A vida é uma arte?
Como sentimos a morte?
Como cuidamos de quem está morrendo/vivendo, de quem está vivendo/morrendo, de quem viveu, de quem morreu?
O que é a morte?
O que será que existe, ou o que se passa tanto no momento da morte como do pós morte?
Haverá outras vidas?
Há céu, inferno, purgatório?
Quem julga, condena, absolve, indica, escolhe para onde ir?
Há para onde ir?
Existe alma eterna? Ou tudo se aniquila com a morte?
Buda nega essas duas visões – tanto de uma alma eterna como a de que tudo se extingue com a morte.
Qual é esta terceira visão?
Por que orar?
Por que fazer cerimônias fúnebres, serviços memoriais?
Não será possível entrar em detalhes ou me aprofundar em cada um dos temas acima, mas me proponho a traçar algumas reflexões baseadas em textos e práticas comuns da minha tradição religiosa.
Feita esta introdução, volto ao texto inicial.
O autor desse texto, Mestre Eihei Dogen (lê-se Dooguen) é o fundador da ordem Soto Shu, no Japão, e tem sido reconhecido nos meios acadêmicos - tanto no Oriente como no Ocidente, como um importante religioso, filósofo, escritor e poeta. Mestre Dogen é um monge do século XIII, no Japão, e um revolucionário em sua época e, quem sabe, em todas as épocas.
A Iluminação não como prazer sensorial nem como algo que se possa falar sobre ou pensar sobre. Pois se pensarmos não atingiremos. Um estado de consciência extremamente sutil e profundo.
E é só através de acessarmos esta sutileza, clareza, profundidade que poderemos responder às nossas perguntas, que poderemos cessar as dúvidas e nos libertar.
Do que nos libertamos?
Das amarras do nascimento-morte.
Nos libertamos da vida-morte.
Pois penetramos o conhecimento de que tudo, a cada instante, está nascendo-morrendo e logo não há nascimento a ser desejado nem morte a ser rejeitada.
Mas, esse pensamento não é uma criação de Mestre Dogen. É uma releitura (religião = religare, relegere) dos ensinamentos clássicos, do fundador histórico do Budismo – Xaquiamuni Buda.
Buda, este nosso fundador, viveu na Índia. Era produto de sua época, mesmo que seus ensinamentos transcendam espaço e tempo. Nasceu Ksatrya, a casta dos guerreiros proprietários de terras. Era um jovem feliz, inteligente, culto, bom esportista, bom guerreiro, bonito, amado, casado, pai de um menino recém nascido.
Nada lhe faltava. Nem alimentos, nem amor, nem aprovação social. Poder-se-ia dizer que tinha tudo para ser completamente feliz. E era.
Mas também era curioso. Como viveriam as pessoas de outras castas, em outras circunstâncias que não a sua?
Fez, então, quatro excursões fora das áreas reservadas aos nobres e se surpreendeu encontrando a pobreza, a velhice, a doença e a morte.
Sim, a morte o surpreende e maravilha. Corpos cremados à beira do Rio Ganges, derretendo pele, corpos, ossos, sentimentos, sensações, alegrias, tristezas. E procurando respostas à inquietação que o assalta, segue o exemplo dos sadhus – os renunciantes – e renuncia a todas suas alegrias, prazeres, amores, ternuras.
Corta os longos cabelos – símbolo da casta – e assim, sendo um ninguém, um renunciante, um sem casta, adentra as montanhas. Encontra grandes mestres, pratica diligentemente, mas ainda não penetra a iluminação, a liberdade da sabedoria suprema.
Senta-se, então em Zazen. A meditação de todos e todas Budas.
Senta-se e percorre as encruzilhadas dos pensamentos, dos desejos, das aversões, das ansiedades, das aflições.
Percorre a própria mente.
Morre.
Morre para a idéia de um eu separado e único. Morre para as tentações dos prazeres sensoriais e das competições intelectuais. Morre para o mundano e atravessa o rio de nascimento e morte em grande tranqüilidade. Chega à margem de Nirvana, paz plena de conhecimento e compaixão.
Durante 49 anos ensinou a inúmeras criaturas o Caminho da Iluminação e da libertação. Todos que deveriam ser despertos assim o foram. E, no dia que hoje chamamos de 15 de fevereiro, entre duas árvores, fez seu último ensinamento e tranquilamente penetrou o Parinirvana. Não dizemos que Buda morreu. Buda não morre. Buda adentra o Nirvana final. A grande tranqüilidade.
Antes de silenciar disse a seus alunos e pessoas presentes
“Façam do Darma o seu mestre e eu viverei para sempre.”
Darma significa a Lei Verdadeira. O que move o céu e a terra, os pensamentos e as ações, a vida-morte.
Buda pediu a seus alunos e alunas que não se lamentassem pois o corpo é descartável, mas os ensinamentos da verdade não.
Seu corpo humano foi cremado e suas cinzas guardadas em várias urnas. As relíquias sagradas. Disputadas por vários reinos. Sentiam-se abençoados em ter os restos mortais de um Buda em suas terras. Traria bem aventurança, pois havia sido um grande renunciante, um santo, um sábio.
E foi este Buda Histórico, -Xaquiamuni Buda (em inglês Shakyamuni Buddha), quem disse: o ensinamento supremo é livre do nascer e do morrer.
A Índia, berço de inúmeras tradições religiosas, estava, na época de Buda, dividida em um sistema de castas rígido, o qual se baseava na crença em reencarnações.
Buda nega esse sistema e afirma:
Um brâmane não o é por nascimento, mas por suas palavras, gestos e pensamentos.
Contrariando a maneira tradicional indiana de compreender vida-morte, Buda nos deixa conceitos básicos de que tudo está interligado, interconectado numa teia de causas, condições, efeitos.
Nada surge por si só.
E tudo está incessantemente se transformando.
Somos essa transformação.
Em cada instante nascem e morrem células em nosso corpo.
No corpo Terra nascimento-morte é incessante. No corpo universo ou multiverso, pluriverso, também. É impossível cessar o movimento, a atividade.
Mas nós humanos temos a condição de compreender um pouco além de nós mesmos. Acessar a essa sabedoria é encontrar a libertação do ciclo de nascimento-velhice-doença-morte.
Libertar-se da morte é entrega e aceitação.
Isso não significa que as pessoas não devem procurar todos os meios de minimizar sofrimento e dor e tentar viver o mais tempo possível. Significa compreender que vida-morte são uma unidade.
Ora, o que é muito interessante ao ler os textos clássicos do Budismo (isso quero dizer os textos mais antigos e reconhecidos como autênticos) encontramos entre eles as chamadas lendas Jetavana, que seriam histórias das vidas anteriores de Buda. Vidas nas quais ele teria criado causas e condições propícias para vir a se tornar um Buda.
Vida-morte é a vida de Buda.
Se você se apegar a um aspecto ou se rejeitar o outro perderá Buda.
Quando não houver nem apego nem aversão você é capaz de penetrar a mente-coração Buda pela primeira vez. Mas não avalie isto intelectualmente nem explique com palavras. Quando você transcende corpo-mente penetra no nível Buda. Buda age em você e você tendo fé em Buda, reconhece em si mesma (o) Buda liberta (o) dos sofrimentos de nascimento-morte, sem esforço, sem ansiedade.” (Mestre Zen Eihei Dogen, Soto Zen no Japão no século XIII)
A vida é um período em si mesma e a morte é um período em si mesma.
Assim como a cinza não volta a ser brasa, a morte não volta a ser vida.
Em cada instante perene e eterno vida-morte se manifestam em atividade incessante.
Quando a vida se manifesta tudo é vida. Existência absoluta, presente, passada e futura, começo, meio e fim. Assim sendo é chamada de não nascida – existência completa.
Cessação da vida também é existência absoluta e tem seu passado e seu futuro. Assim sendo destruição é chamada de não destruição.
A vida não se transforma em morte, da mesma maneira que a Primavera não se transforma em Verão.
A Primavera é um período em si mesma. O Verão um período em si mesmo.
Quando falamos vida tudo que existe é apenas vida.
Quando falamos em morte, tudo que existe é apenas morte.
Na vida somos vida, na morte somos morte. Sem desejar uma, sem odiar a outra.
Assim a Vida é um período, com princípio meio e fim. A Morte é um período tendo princípio, meio e fim.
Vida-morte é um continuum incessante de transformação sem uma entidade fixa ou permanente.
Mestre Dogen rejeita a idéia dualista de corpo e alma, assim como qualquer pensamento dualista é por ele rejeitado.
Buda também rejeitou a versão de uma alma permanente – conhecida no Budismo como a Heresia de Senika, cujas raízes estão nos Upanishads, texto hinduísta antigo – e também combateu a idéia que tudo terminaria com a morte, nada mais havendo – o nihilismo materialista.
Se acreditamos na Lei da Causalidade, as causas e condições de uma vida não se extinguem ao fim de uma vida.
Joan Stambaugh, professora catedrática de Filosofia no Hunter College da Universidade da Cidade de Nova Iorque, escreveu no capítulo Nascimento e Morte do seu livro Impermanência é Natureza Buda:
A questão se a alma continua a existir ou não após a morte pressupõe quenascimento é o princípio de um processo contínuo, vida, e que a morte é o fim. Se não aceitarmos este ponto de vista de que a vida é uma duração do tempo, iremos encontrar uma maneira diferente de questionar vida e morte.
Vida não é o princípio de um processo. Morte não é o fim do processo. Colocando de outra maneira, o “processo”, o que está acontecendo, é concebido de maneira errada. Na verdade, é suficiente dizer que é concebido, isto é, distorcido por nossa camada conceitual.
Mestre Dogen, no capítulo Shoji – Vida-Morte, de sua obra Shobogenzo escreveu:
A vida é contida na morte e a morte contida na vida. Ainda assim vida é vida e morte é morte. Isto quer dizer, esses elementos são independentes em si mesmos e ficam sós, sem requerer qualquer existência ou referencia fora de si mesmos.Pessoas comuns pensam da vida como algo assim como um carvalho (começa com uma semente, cresce e morre) e pensam na morte como algo que não mais se move. Entretanto, assim como o conceito de um carvalho se diferencia da árvore real, as idéias sobre a vida geralmente conflitam com a própria vida. Na compreensão verdadeira, a vida nunca é um obstáculo. A vida não é a primeira atividade e a morte a segunda. A vida não é relativa à morte, nem a morte à vida.
A relação (ou não-relação) de vida e morte tem a ver com estar presente
(viver ou morrer) na situação-darma*. Na situação deste átimo de segundo, deste instante, sem antes nem depois. Sendo o Tempo. Quando a compreensão vida-morte é desnudada dos conceitos de duração de tempo estaremos lidando com o ser tempo. Somos o tempo. Somos a vida. Somos a morte.
Cada ser humano é um agregado de cinco elementos: forma física, sensações, percepções, conexões mentais e vários níveis de consciência. A forma física é formada pelos cinco elementos, que constituem toda a vida do céu e da terra. Causas e condições propícias e uma forma se manifesta. Causas e condições se transformam e as formas se transformam.
A mente, os vários níveis de consciência, igualmente estão neste constante fluir dependendo de causas e condições.
Quando nasce uma criança fazemos uma celebração. Ritual de dar boas vindas. Em vários momentos da vida há rituais que marcam estágios da existência. No final da vida os rituais também são muito importantes e significativos.
A pessoa que está no final da vida, evidentemente, sabe que está no final. Nós somos a vida deste corpo-mente.
Entretanto podemos não nos aperceber por uma interpretação errônea de uma consciência chamada de intermediária, que transmite informações da consciência central - que tudo sabe, que tudo permeia, que tudo coordena, que tudo memoriza, chamada de alaya shiki ou consciência armazenadora - para a consciência que rege ou coordena as consciências relacionadas aos cinco órgãos dos sentidos.
Esse nível de consciência intermediária, que também leva informações dos órgãos dos sentidos para a consciência armazenadora, pode interpretar erroneamente as mensagens, causando assim distorções no sistema de compreensão.
Esse erro de interpretação pode causar muito sofrimento, dor e até mesmo idéias falsas de si mesmo, como a de considerar que temos em nós uma entidade eterna.
E a pessoa pode pensar que não está morrendo.
Então, o ritual correto é fazer ver ao moribundo que está morrendo. Não há nada a esconder nesse momento. Somos um processo em transformação.
Vida-morte é um processo incessante de transformação.
O ritual do fim da vida é importante. Para os que morrem, para os que vivem.
Fechamos um círculo. Para nós budistas esse círculo leva 49 dias após o óbito.
Morrer é como adentrar outra dimensão, como ir fazer uma viagem a lugares novos e desconhecidos. Ao mesmo tempo esses lugares são familiares. Conforme o carma – ações que deixam marcas, impressões na realidade – abrem-se mundos diversos para a pessoa que está deixando a vida. Podem ser universos de luz e alegria, podem ser de sofrimento e dor, podem ser campos, animais, plantas belíssimas ou cenários aterrorizadores. Nesse momento dizemos à pessoa que tudo surge de sua própria mente. Que não se atemorize. Que compreenda e, sem apegos e sem aversões, vá à luz infinita, liberte-se da vida e da morte.
Acreditamos que se houver o verdadeiro arrependimento por ações, palavras e pensamentos prejudiciais cometidos em qualquer época, os mundos de sofrimento e dor se transformam em esferas de harmonia.
Assim, o ritual de despedir-se é muito importante. Inclui o arrependimento e a entrega a Buda. É preciso terminar bem o livro desta vida. Livro com prefácio, vários capítulos e um final. Esse final é um outro começo, de outro livro, com outro título e outras inúmeras possibilidades.
Não é o mesmo livro, nem o mesmo personagem, mas outro livro.
Como ondas no mar.
Tudo é o oceano, que recebeu águas de inúmeros rios. Causas e condições formam ondas. Cada onda como se fosse uma existência. Cada uma interdepende da outra, mas não é a outra. Interligadas e ao mesmo tempo únicas. Transformando-se a todo instante. As causas e condições de uma onda se tornam efeitos em outras e assim por diante.
Mas cada uma tem começo, meio e fim.
Felizes os que conscientemente podem morrer.
Orando e agradecendo a vida. Abençoando e se despedindo com ternura dos que ficam. Entregando-se à experiência seguinte, sem apegos e sem aversões.
O filme traduzido ao Português como A Partida”, que recebeu o Oscar em 2009, chamado em Japonês de Okuri hito ou Okuribito – a pessoa que encaminha – é um filme muito interessante sobre os cuidados com o morto, com a morta, numa área rural ao norte do Japao. Não apenas um corpo, um lixo a ser descartado, saindo pelas portas dos fundos dos hospitais e das casas.
Mas um corpo sagrado, chamado de Hotoke – o mesmo que Buda.
Esse corpo sagrado, que viveu uma existência, precisa ser tamponado de forma cuidadosa e amorosa. O ritual feito em frente aos familiares, a troca de roupas, a maquiagem, o rosto voltando a ter a fisionomia corada da vida. A despedida, a cremação.
Na cerimônia religiosa budista, pode ser feito tanto no velório (chamado de O Tsuya – Noite do Orvalho) ou na própria cerimônia fúnebre, é entoado o poema do arrependimento:
Todo carma prejudicial alguma vez cometido por mim
Devido minha ganância, raiva e ignorância
Nascido de meu corpo, boca e mente
Agora, de tudo, me arrependo
Arrepender-se é transformar-se, é purificar-se. Depois do arrependimento é feito o refúgio nas Três Jóias, os Três Tesouros budistas: Buda, Darma e Sanga.
Buda, o ser iluminado, a sabedoria suprema.
Darma, a Lei verdadeira, a Verdade Superior.
Sanga, a comunidade em harmonia.
Um não existe sem o outro. Nessa trindade confiamos e a essa trindade retornamos e nos entregamos, na certeza que nos acolhe e protege.
Assim, os mortos são encaminhados e sempre rezados, até 49 dias, quando acreditamos completar um ciclo vida-morte.
Se o budismo tibetano fala de 49 bardos, 49 estágios intermediários apos a morte, o budismo japonês também fala de 49 dias de transmigração, de passagem, encerramento de um ciclo vida-morte. Assim sendo, uma vida poderia ter durado um dia ou cem anos, mas o período morte corresponderia sempre a apenas 49 dias humanos. Após 49 dias a morte deixa de ser, a morte morre.
Quando a morte termina, a vida começa. Mas não a mesma vida, nem a mesma morte. Nada jamais se repete.
No Japão, continuamos orando depois desses quarenta e nove dias. As cerimônias são de cem dias, um ano, três anos, cinco anos, sete anos, treze anos, dezessete anos, vinte e três anos, vinte e cinco anos e assim por diante até os cinqüenta anos do falecimento. Se a família se manteve unida por cinqüenta anos, orando por um ancestral, dizemos e que esse/a ancestral se tornou um anjo/a da guarda e que protegerá seus/suas descendentes.
Preparar-se para a morte é preparar-se para a vida. É estar pronta a cada instante, fazendo o melhor de si a cada momento. Pois nunca sabemos quando e onde as causas e condições que tornam possível nossa vida serão rompidas.
Aos que se vão abruptamente agradecemos a vida que compartilharam, quer tenha sido de um dia, de meses, ou de muitos anos.
E que possam seguir em paz, tranqüilidade, e que nós, que aqui ficamos, completaremos o que tenha de ser completado na ternura e no cuidado do amor que desconhece fronteiras.
Todo o processo de finalização da vida é murmurado, orado, abençoando e invocam-se a presença, a luz, a serenidade dos seres sábios, iluminados e benfazejos - Budas e Bodisatvas – para que mostrem o Caminho da Luz Infinita.
Sem medo e sem expectativas fantásticas.
Não há exclusões ou discriminações – os serviços religiosos são feitos para qualquer pessoa, quer sua morte tenha sido provocada intencionalmente ou não. Isso inclui suicidas, assassinatos, acidentados, abortos, além da morte natural por velhice ou doença.
Em vida, vivemos. Somos a vida.
Quando a morte chega, penetramos a morte. Somos a morte.
Budismo interpreta a existência humana como vida-morte e não apenas como algo que vai morrer. Assim vida e morte não estão em oposição. A morte não precisa ser vencida, superada. Mas, a libertação é do nascimento-morte ao invés de ser uma conquista da morte. O objetivo não é a imortalidade e a vida eterna através da conquista a morte, mas o não nascido e o não morto - estado de nirvana realizado diretamente e através da vida-morte pela libertação da própria vida-morte. Este é o ponto fundamental.
Nesta perspectiva há uma completa e pura realização liberta de qualquer antropocentrismo. Todos os seres são a entidade integrada da natureza Buda. Quando Xaquiamuni Buda teve sua experiência mística, a libertação da vida-morte, exclamou:
Eu, a grande Terra e todos os seres juntos, simultaneamente, nos tornamos o Caminho.
Este estado de não dualidade, de integridade é que o monge vietnamita Thich Nath Hahn, fundador de Plum Village, na França, chama de interser. Intersomos. Tudo existe em um processo incessante de surgir e desaparecer. Todos interligados, interconectados a todos, na grande web, teia, rede da existência.
Vida-morte são em si mesmo Nirvana.
Sem vida a ser desejada sem morte a ser rejeitada.
(Nirvana é a grande paz sábia, grande tranqüilidade, o extinguir das aflições e das dúvidas – é o estado de libertação de todos os Budas, de todas as Budas).
Que possamos todos nos tornar o Caminho Iluminado.
Apreciando a vida-morte.
Maha Prajna Paramita (Grande Sabedoria Completa).
* Darma de Buda – se refere aos ensinamentos de Buda. Darma com letra maiúscula sempre se refere à Verdade Suprema. Darma com letra minúscula (sua posição no darma) significa todo e qualquer fenômeno.
BIBLIOGRAFIA
Dogen, Eihei – Shobogenzo
Abe, Masao – A Study of Dogen, his Philosophy and Religion – State of New York University Press, Albany US 1992
Buda Xaquiamuni – Breve Parnirvana Sutra
Stambaugh, Joan – Impermanence is Buddha Nature – University of Hawaii Press – Honolulu - 1990

Nenhum comentário:

Postar um comentário